País desalinhado
Em algumas partes de Portugal, o comboio desapareceu. Noutras, ficou mais lento. Este é o retrato de uma ferrovia sempre com planos mas nunca com planeamento.
Uma linha de vestígios
A Linha do Tua é o exemplo mais conhecido do comboio que abandonou as pessoas. Em 1991, começou o seu desmembramento; em 2009, uma parede de betão acabou com um caminho de ferro.
Quem chega ao centro da cidade pode ser enganado pelo aspecto do edifício. Café a funcionar, sala de espera, plataformas e carris no chão. Nas paredes exteriores, ‘Bragança’ escrito em letra de imprensa, pintado de azul sobre azulejos. Os tempos em que o comboio apitava na gare de Bragança acabaram em 1992.
Estamos no PK 133,768 da Linha do Tua. O mesmo é dizer que estamos a exactamente 133 quilómetros, 700 metros, 60 decímetros e 8 centímetros da estação ferroviária de Tua, no ramal com o mesmo nome. Bragança continua a ter uma estação, mas de ferroviária passou a rodoviária.
Mosca era a primeira paragem à saída de Bragança. “Agora moro na recta”. Fátima Pires diz isto como se fosse algo de conhecimento universal. Mora nesta zona há mais de 50 anos e foi em 1967 que começou a usar o comboio. Há uma coisa que a mulher de 61 anos vinca: “Éramos muita gente, muita gente mesmo”. Eram sobretudo alunos que iam para as escolas de Bragança, “mas quando era dia de feira havia mais pessoas”.
No chão ainda se vê o traçado da linha. No edifício, muitas telhas caíram. As portas, a existirem, são de madeira já podre. No interior repousam colchões, botijas de gás e peças de roupa. “Aqui era o gabinete do chefe e aqui tirava-se os bilhetes”, recorda Fátima Pires. E os comboios? “Ui, aquilo andava a cinco à hora, tudo sujo, sem aquecimento”. O retrato dos comboios, a carvão, é negro. Mais tarde, vieram máquinas a gasóleo.
O último apito que Fátima Pires e os restantes habitantes de Mosca terão ouvido foi em Dezembro de 1991. Dando cumprimento a uma reforma ferroviária do Governo chefiado por Aníbal Cavaco Silva, a CP, depois de um descarrilamento na aldeia de Sortes, acabou nesse ano com o serviço de comboios entre Mirandela e Bragança, reduzindo a linha do Tua para menos de metade.
“Linha pior é difícil de encontrar”, disse na altura Oliveira Santos, administrador da CP, ao jornal Mensageiro de Bragança. O troço Mirandela-Bragança ainda tinha os carris originais de 1904.
A argumentação de Filipe Esperança passa muito pela alegada falta de manutenção da linha, o que, na sua opinião, contribuiu para afastar os passageiros. Filipe era bebé quando o comboio foi retirado de Bragança. Está hoje à frente do Movimento Cívico pela Linha do Tua (MCLT), fundado em 2006 e que pretende divulgar as potencialidades daquela linha e reivindicar a sua reabertura. “Sim, o MCLT ainda reivindica a abertura da linha do Tua, eventualmente com alterações ao traçado e correcções de percurso”, sintetiza. Filipe fala em frente a um núcleo do Museu Nacional Ferroviário, ao lado da estação rodoviária de Bragança. Lá dentro repousam locomotivas e carruagens que o MCLT gostaria de ver com gente dentro.
Essa gente que usava o comboio, explica Filipe, começou a afastar-se dele no final dos anos 80. E aponta dois “grandes factores”. Primeiro, a “evolução natural do carro”, que deu “aquele salto” em Portugal nos anos 70 e 80, fazendo “muita concorrência ao transporte ferroviário”. Segundo, “o desinvestimento na via”. O responsável, de 27 anos, refere que “até meados dos anos 80 eram utilizadas na linha do Tua composições a vapor”, um serviço “lento, poluente e sujo”. Os dois argumentos de Filipe Esperança desaguam na mesma conclusão; foi mais o comboio que se afastou das pessoas que o contrário. E acusa directamente o operador: “Foi o comboio que deixou de ter horários que permitissem às pessoas continuarem fiéis ao transporte”.
“Vamos ter ao Tulipa, pode ser? Já aí vou!”. Assim revela Luís Francisco Mina a prontidão para conversar sobre os comboios em Bragança. Era ele o presidente da câmara municipal de Bragança quando a CP fez saber que a capital transmontana perderia o comboio. Vem ao Hotel Tulipa, no centro de Bragança, recordar o que fez enquanto autarca.
Quem fizer uma pesquisa no YouTube sobre a retirada dos comboios de Bragança facilmente é levado até ao 14 de Outubro de 1992. Nas reportagens da RTP, vê-se populares que contestam a decisão da CP e alegam que o comboio lhes faz falta. Mas Luís Mina diz que, “de uma forma geral, [o processo] foi completamente pacífico”. Na opinião do antigo presidente, a cidade, na altura, ficaria mais bem servida com a rodovia do que com a ferrovia. Explica: “Para o comboio servir as populações, tinha de parar em todas as estações e apeadeiros, o que demorava imenso”. E conclui: “Para servir as populações, não servia as grandes distâncias”.
Não é sequer preciso colocar perguntas a Francisco Mina: as memórias de 1992 saem-lhe da boca com espontaneidade. O discurso do antigo presidente contradiz as vozes de contestação, e é categórico: “Posso garantir que nunca tive contestação nenhuma. As pessoas viam que [o comboio] não era sustentável”.
Descemos ao PK 55,200. Mirandela. As portas e janelas do rés-do-chão da estação ferroviária estão emparedadas, por receio de actos de vandalismo. Já ninguém usa estas plataformas, tomadas de teias de aranha e de sujidade. Os carris do Metro Ligeiro de Mirandela estão a menos de 100 metros dos autocarros, e olham com inveja para o aspecto lavado das instalações do projecto turístico de Mário Ferreira, que vai ligar de novo ao Tua a cidade de Mirandela.
“Faz falta este servicinho para a aldeia, não faz?”. A pergunta retórica é de Adolfo Campos. Quem estiver numa qualquer plataforma da imponente estação de Mirandela ouve a sachola de Adolfo a rasgar a terra do seu quintal. Mora em frente à estação e é utilizador frequente do metro, que faz hoje a ligação entre o Cachão e Carvalhais, passando por Mirandela. Adolfo não vai na conversa de que não havia passageiros para o comboio. “Isso, para mim, foi política. Nem foi a CP nem foi mais nada, foi política”.
O Metro de Mirandela fez uso de uma possibilidade aberta pelo governo, no final dos anos 80. As autarquias ou entidades locais de zonas que perdessem o comboio poderiam unir-se e explorar, em conjunto, as linhas desactivadas. Mas já lá vamos.
É preciso ir atento para se manter em pé. Os 16 km não são penosos de se fazer, mas o comboio trepida e o dangue-dangue das rodas nos intervalos dos carris é, ao mesmo tempo que sensível, audível. Dentro da automotora da série 9500 estão seis pessoas, das quais dois turistas estrangeiros. Soubessem eles toda a história da linha por onde circulam e ficariam surpreendidos pelo traçado sinuoso que ela conta.
O “vizinho” da antiga estação de Mirandela quase que faz um pedido: “Podiam ligar mais a esta zona de Trás-os-Montes”. Afinal, “é aqui que eles ganham os votos”, conclui Adolfo Campos.
Quem “ganha os votos” decide para onde vai o dinheiro e que uso lhe será dado. País fora, há muitos vizinhos de linhas, como Adolfo, que passarão a vê-las electrificadas e, possivelmente, com novos comboios. O ano redondo que se aproxima - 2020 - traz também grandes obras, investimentos - e promessas - que se esperavam há muito tempo.
Objectivo: modernizar
O Ferrovia 2020, construído pelo governo de Passos e aprovado pelo governo de Costa, coloca nas mãos da Infraestruturas de Portugal muitos prazos e pouca margem para erro.
Os avisos de chegadas e de partidas de comboios são constantes na estação de Campanhã. O urbano que vai para Caíde, o Alfa que vem de Faro, o Intercidades que vai para Guimarães.
O Alfa Pendular número 135, procedente de Lisboa Santa Apolónia, chegou à estação de Porto Campanhã com cinco minutos de atraso. O destino é Braga, mas António Alves sai nesta estação: um colega há-de continuar a marcha. António é maquinista há 25 anos e, desde cedo, muito próximo da temática dos caminhos-de-ferro. “Tenho um gosto pelo sistema, pela operação ferroviária, pelos comboios como sistema logístico ao serviço da sociedade”.
Pelo meio dos anúncios, surge o «comboio, regional, CP - Comboios de Portugal, com destino ao Pocinho», que «efectua paragem em todas as estações e apeadeiros». A Linha do Douro era a mãe de todos os ramais de via estreita do Norte de Portugal: dela nasciam as linhas do Tâmega, Corgo, Tua, Sabor e ainda a linha internacional entre Pocinho e Barca d’Alva, com ligação a Espanha. António ainda tem “esperança que se recupere o troço entre Pocinho e Barca d’Alva”, encerrado em 1988.
Mas essa reabertura, apenas um dos desejos de António no contexto ferroviário português, não está contemplada no Plano Ferrovia 2020, o maior e mais recente plano de investimentos no caminho-de-ferro em Portugal. Com financiamento do Estado Português e de fundos europeus, o Ferrovia 2020 foi apresentado em Fevereiro de 2016 e está a intervir em 1193 dos 2562 km de linha férrea geridos pela Infraestruturas de Portugal, empresa surgida após a fusão da Estradas de Portugal com a REFER.
A reabertura do troço entre Pocinho e Barca d’Alva é só um exemplo de uma de muitas promessas antigas. No caso, em 2009, evocaram-se a “coesão territorial” e “deuses” no plano de intenções assinado para reabrir aquele troço de 30 km. Paradoxalmente, houve quem já tivesse falado num encerramento do troço entre a Régua e o Pocinho, mas António Alves acha que “a procura turística vai sustentar esse percurso”. Facto é que o Ferrovia 2020 se fica pela Régua, com o plano de electrificação entre Marco de Canaveses e aquela cidade.
O maquinista de 55 anos, membro da Associação Comboios XXI, faz uma apreciação positiva deste plano de investimento, inédito em Portugal pela quantidade de dinheiro envolvida. António usa sempre o adjectivo ‘óptimo’ para se referir às electrificações da linha do Minho e Algarve, renovação da linha da Beira Alta e construção de nova linha entre Évora e Caia. Mas aponta o que considera ser “o maior erro” no panorama ferroviário em Portugal: a falta de alternativa à linha do Norte (entre Porto e Lisboa). “Está mais que comprovado que a linha do Norte não tem capacidade para se expandir. Está sobrecarregada e convivem tráfegos muito diferentes”. Apesar de principal eixo ferroviário português, a linha do Norte ainda não está totalmente modernizada - essa modernização começou nos anos 90.
“Os comboios pendulares já estão cá há 16 anos, mas estão muito longe de serem explorados no seu máximo potencial. E nunca irão ser”, lamenta.
Em 1999, o investimento nos 10 Alfas Pendulares, máquinas que, comercialmente, a CP embandeira em arco, foi relevante para uma melhoria do panorama ferroviário português. O Ferrovia 2020 escreve um capítulo importante na história do caminho-de-ferro nacional, que foi sendo feita de altos e baixos.
Fechar, prometer e fechar
Desde o final dos anos 80 que a história da ferrovia em Portugal pode ser contada em três fases, nem sempre muito distintas.
A política foi a principal redactora da história do caminho-de-ferro em Portugal. Os últimos 30 anos foram salpicados de encerramentos, dispersos no tempo e nos governos. Mas concentradas nas justificações. Começamos a viagem em 1986, data de entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE).
O cemitério de carris
Primeira paragem: 1987.
Tinha passado pouco mais de um ano desde a entrada de Portugal na Comunidade. XI Governo Constitucional, chefiado por Aníbal Cavaco Silva. No programa desse governo, o capítulo “Modernizar o País. Criar mais riqueza” era claro: “A rede de serviço público ferroviário de passageiros será redimensionada e modernizada”. Ter-se-á em conta “a dinamização comercial e a racionalização dos custos”. As intenções do governo foram, todas elas, expressas no “Plano de Modernização dos Caminhos-de-Ferro (1988-1994)”, assinado a 9 de Dezembro de 1987.
O texto refere que, “dos 3600 km de rede da CP, 2090 nunca sofreram quaisquer tipos de beneficiação”, a que se juntava a “conhecida insuficiência de recursos financeiros provenientes de exploração”. Mas a frase que abria a porta às mudanças dos anos seguintes era reveladora: “A modernização dos caminhos-de-ferro em Portugal não deve fazer-se no pressuposto de que os serviços produzidos e a configuração actual serão uma constante para o futuro”.
O governo de Cavaco Silva dividiu as linhas portuguesas nas que eram “financeiramente rentáveis” («Rede Principal»), “não financeiramente rentáveis mas de utilidade pública” («Rede Complementar») e ainda as linhas “sem interesse nacional” («Rede Secundária»).
A Rede Principal era composta pelo eixo Braga-Faro, pelo ramal de Guimarães e pela ligação a Espanha através da Beira Alta, com passagem pela cidade da Guarda. Essa divisão da rede pressupunha ainda a construção de linha nova entre Évora e Elvas.
A Rede Complementar dizia respeito a toda a linha da Beira Baixa (Guarda-Abrantes), a toda a linha do Oeste (Torres Vedras-Figueira da Foz), ao eixo entre Casa Branca e Beja, à quase totalidade da linha do Algarve a ainda ao troço entre Régua e o Tua.
Finalmente, a Rede Secundária compunha-se quase na totalidade por todas as linhas no Alto Douro e em Trás-os-Montes.
No entender deste governo, 700 km de via férrea não eram de “interesse nacional”. O foco da CP deveria ser, pelo contrário, “o transporte de passageiros suburbanos de elevada densidade”, além de que “os itinerários das circulações deverão reduzir-se aos que permitam níveis de tráfego justificativos do transporte ferroviário”. A “nova ordem” para o caminho-de-ferro nacional concentrar-se-ia sobretudo no eixo Norte-Sul e nos eixos de ligação à Europa.
A redução de linhas de caminho-de-ferro, também chamada de “racionalização”, previa que o número de passageiros por quilómetro aumentasse 3,4%/ano nos comboios de longo e médio curso e 1%/ano nos comboios suburbanos. Mas não foi isso que se verificou. O número de pessoas transportadas em modo ferroviário caiu de 40% entre 1988 e 2008.
Os investimentos ferroviários deste plano de 1988 estavam “em harmonia” com os planos rodoviários da Junta Autónoma de Estradas (JAE) e da Brisa. Ou seja, os investimentos ferroviários que não se fizessem seriam compensados pelos investimentos rodoviários, já que o caminho-de-ferro seria “naturalmente muito mais vultoso” do que a rodovia. Além disso, os percursos com menor tráfego (os da Rede Secundária) poderiam ser “perfeitamente assegurados pelos transportes rodoviários”.
Numa época em que o dinheiro vindo da CEE precisava de destino, a escolha dos governos pendeu para as estradas - sobretudo as auto-estradas. Portugal não só se aproximou como ultrapassou a média da União Europeia em auto-estradas construídas. O mesmo não aconteceu com as linhas de comboio: ao encerramento de muitos quilómetros não se juntou a construção de novos troços. De 1990 até hoje, Portugal não construiu novas linhas.
A alta velocidade das promessas
Segunda paragem: 1999.
Em 1990, ano em que haviam encerrado mais de 700 km de via férrea, prometia-se o TGV em Portugal: uma linha entre Lisboa e o Porto e, no Entroncamento, um desvio para a ligação a Madrid. A promessa parecia sólida, mas ficou em banho-maria quase 10 anos.
Foi o segundo governo de António Guterres, em 1999, a prometer a aposta em “ligações ferroviárias internacionais a alta velocidade”. Em 2000, nascia a RAVE — Rede Ferroviária de Alta Velocidade, SA, uma empresa destinada a pensar e concretizar a implementação do TGV em Portugal. Houve estudos e as obras de preparação para a linha chegaram a arrancar, na zona de Lisboa. O projecto praticamente não saiu do papel, mas custou mais de 150 milhões de euros.
O governo de Pedro Passos Coelho foi, em 2011, parco mas decisivo nas palavras: “O projecto de alta velocidade será abandonado”.
O cemitério dos carris (segundo acto)
Terceira paragem: 2011.
A 13 de Outubro, era aprovado o “Plano Estratégico dos Transportes” (PET), com abrangência até 2015. A “racionalização” da rede ferroviária continuava nas parangonas do governo.
O PET determinou o encerramento de várias linhas, até aí com normal circulação de passageiros. As vítimas, desta feita, foram o ramal de Cáceres, a linha de Vendas Novas, o troço Beja-Funcheira, a linha do Leste, o ramal da Figueira da Foz e a linha do Vouga. O plano determinou ainda o encerramento definitivo de linhas cujo serviço de passageiros havia sido “suspenso” em 2009: linhas do Corgo, Tâmega e Tua.
Ao todo, eram mais de 800 km de linha que deveriam ser fechados. Algo semelhante ocorreu no início dos anos 90. A proposta de 2011 foi entregue à troika à revelia da REFER, entidade pública que geria a via.
O governo de Passos Coelho deu início a uma série de “avaliações técnicas e económicas”, que, em conjunto, dão muito mais importância ao transporte de mercadorias do que de passageiros.
E depois de 30 anos de “racionalização”?
Chegada ao destino: hoje.
Costuma dizer-se que «o que nasce torto tarde ou nunca se endireita». E a história do caminho-de-ferro em Portugal é um reflexo do ditado popular. A lógica de rede no caminho-de-ferro em Portugal é um conceito pouco praticado e foi, inclusive, quebrado a partir dos anos 90. Quem é afirma é o maquinista da CP António Alves, acrescentando que as empresas rodoviárias de transporte “adoptaram” essa lógica de rede, até aí pertença do comboio. “Nós não temos uma rede ferroviária. Temos linhas quase isoladas. O eixo Braga-Faro funciona como uma linha isolada, única”.
O maquinista está ciente de que a sua argumentação seria, “muito provavelmente”, recusada por um governante dos anos 90 ligado aos transportes. No entanto, ressalva que na altura havia uma “questão cultural” em jogo: “o expoente da cultura do automóvel”. A democratização dessa forma de transporte foi um catalisador positivo para o discurso das auto-estradas.
Quem também partilha dessa opinião é Elsa Pacheco, especialista em transportes e com uma tese de doutoramento sobre as redes rodoviária e ferroviária. Elsa chama mesmo “o surto das auto-estradas” à vaga de construção nos anos 80 e 90. A professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto não compreende que num país com “tantos problemas” se façam “tantas auto-estradas”.
As opiniões de Elsa Pacheco e de António Alves divergem quando se fala em justificar as vagas de encerramentos de linhas de comboio em Portugal, mas convergem quando se fala da lógica da rede.
Para a professora, linhas como a do Corgo, Tâmega ou Tua foram inicialmente construídas a pensar nas actividades económicas ali existentes, nomeadamente a actividade mineira. “A procura por um elevado número de passageiros seria a razão fundamental para a construção de uma infra-estrutura pesada como o caminho-de-ferro”, explica. Elsa não se quer mostrar totalmente a favor dos encerramentos, antes entende que eles devem ser “explicados”.
Se um plano de 1930 se tivesse concretizado, talvez os encerramentos tivessem sido ainda mais. O Plano Geral da Rede Ferroviária previa acrescentar 48 novas linhas, ramais e troços à rede de caminhos-de-ferro portugueses. O mapa, é certo, ficaria mais preenchido. Pelo menos por algum tempo.
Da razia dos anos 90 à razia de 2011 os motivos são praticamente os mesmos. Muitas populações deixaram de ter comboio e alternativas prometidas ficaram pelo caminho. Mas, mais do que sobreviventes, houve resistentes.
Uma linha sempre às voltas
Recebeu o equivalente da extrema-unção no mundo do comboio, mas sobreviveu e, embora limitada, continua a caminhar pelo vale do Vouga.
Não se ouviu na estação de Aveiro o habitual anúncio da partida do regional com destino a Sernada do Vouga. O cheiro a gasóleo queimado e o barulho dos motores da velha automotora são a única forma dos passageiros se aperceberem de que o comboio sairá da linha número 8. Devagarinho, abandona as vias electrificadas e deixa de conviver com os Alfas ou com os urbanos do Porto.
Os comboios da série 9630 da CP percorrem uma linha que, tivesse sido cumprida a intenção política de a encerrar, já estaria totalmente abandonada. Era essa a pretensão do governo, em 2011.
Trinta minutos depois, o regional número 5107 entra na estação de Águeda. De todo o troço entre Aveiro e Sernada do Vouga, esta é a estação principal. Na plataforma 1, Fátima tem as compras pousadas no banco da estação e o olhar circunscrito à pequena área de três plataformas da estação de Águeda. “Há comboios quase de hora a hora. É suficiente, então não é?”. Aos 62 anos, Fátima Ferreira nunca viu sem comboios a linha entre Aveiro e Espinho, a par do rio Vouga. Utilizadora frequente, são as deslocações a Aveiro “para ir a consultas” o motivo principal para utilizar o comboio. “A gente… É o nosso transporte”, resume.
Ao lado, a neta, também Fátima, vai concordando com a avó. Agora não utiliza tanto o comboio. “Só quando tenho de ir a Aveiro fazer algumas consultas com a minha pequenina”.
As duas Fátimas não utilizam o troço entre Sernada do Vouga e Oliveira de Azeméis. Não porque não queiram, mas porque não podem: está encerrado ao serviço de passageiros desde Dezembro de 2013. À míngua de investimento, as condições foram-se agravando. O “Vouguinha”, como carinhosamente a população lhe chama, só circula entre Aveiro e Sernada do Vouga e entre Espinho e Oliveira de Azeméis. O trajecto entre Oliveira de Azeméis e Sernada do Vouga é efectuado por táxis, um às 6 da manhã e outro às duas da tarde.
À porta do Café da Estação, o sotaque brasileiro poderia denunciar a nacionalidade - poderia, mas não denuncia. “Sou Aguedense”, esclarece Sílvio Pimento. Os vários anos que passou no Brasil imprimiram-lhe a pronúncia além-Atlântico. Fervoroso adepto da linha do Vouga, Sílvio usa o comboio “uma vez por semana. Eu, a minha mulher e o miúdo”. Sabe que ficaria mais barato “ir de carro e ter a liberdade de horário, “mas, pelo passeio em si, gosto de ir de comboio”.
Sílvio também é da opinião de que novos comboios serviriam melhor as populações do que os actuais. As automotoras da CP foram construídas na Sorefame em 1991. Não são velhas, mas o cheiro a gasóleo dentro do veículo fá-las parecer.
A linha do Vouga é uma sobrevivente. A sua certidão de óbito foi assinada em 2011, com o Plano Estratégico dos Transportes, que ordenava o seu encerramento, a par de muitas outras cuja ordem foi efectivamente cumprida. As autarquias da zona uniram-se em torno da linha e lutaram pela sua manutenção.
Um dos rostos dessa luta foi - e é - Pedro Marques, presidente da Junta de Freguesia de Macinhata do Vouga. Pedro Marques assume-se como o “principal aliado” da câmara municipal de Águeda na luta pela manutenção do comboio nesta zona, densamente muito povoada. As autarquias e juntas de freguesia da zona investiram “poucos, mas alguns” milhões de euros em obras de beneficiação desta linha, como a instalação de fibra óptica para melhoria das comunicações e de sistemas de sinalização.
O presidente de junta, novamente candidato nas eleições autárquicas de Outubro de 2017, fala com entusiasmo do comboio. Com mais entusiasmo fica quando fala do inédito comboio histórico do Vouga, que vai efectuar um percurso turístico entre Aveiro e Macinhata do Vouga, com paragem em Águeda.
A linha que em 2011 o governo quis encerrar tem hoje direito um comboio turístico, que a CP vai estrear em Julho de 2017.
A paragem que as recuperadas carruagens de madeira e a locomotiva diesel vão fazer em Macinhata do Vouga não é por acaso. Ao lado da estação, está um núcleo do Museu Ferroviário Nacional, onde repousam antigas e históricas composições da CP. Quem entra, não fica indiferente à parafernália de objectos ligados à ferrovia, entre fardas, lanternas e horários de todas as linhas e épocas do país. No topo da sala, Santo Amaro, o padroeiro dos ferroviários.
É Diana Lemos a guia e rosto do museu. Quando em 2011 se decidiu encerrar a linha, falou-se do encerramento do museu de Macinhata. Não aconteceu. A linha continuou a funcionar e o museu chega “aos 5 mil visitantes por ano”. Diana é testemunha privilegiada do tráfego de passageiros da linha do Vouga. “Sim, as pessoas usam muito. Se formos a Águeda no início da manhã e à tarde, a estação está à pinha”, ilustra.
Diana não só prevê como espera ter mais trabalho no museu com a chegada do comboio histórico do Vouga. Mais do que isso, espera que ele seja “um impulso” para a reabertura da linha entre Sernada do Vouga e Oliveira de Azeméis.
A Linha do Vouga é o último reduto de via estreita em Portugal. Quem por lá anda garante que faz sentido estar aberta, e o comboio histórico, dizem, é a prova disso. O traçado sinuoso e acidentado faz-lhe merecer o epíteto de “Linha do Vale das Voltas”. A volta que deu em 2011 salvou-a do encerramento. Hoje, por ali, o comboio ainda apita.
Ficha Técnica
Eduardo Miranda
Nasci a 18 de Setembro de 1996, em Vila Nova de Famalicão.
Foi logo na escola primária que, de forma quase inconsciente, me apercebi do gosto pela escrita e pela leitura. A aliança com a comunicação surgiu quando comecei a aprender línguas estrangeiras. A universidade foi o culminar de tudo.
Gosto de rádio e de televisão. Jornais e magazines. De comboios. E de contar histórias.
Mais em edumsmiranda.wixsite.com/eduardomiranda.
João Pedro Quesado
Curioso por natureza, gosta de escavar onde ninguém se lembra para tentar incomodar alguém. É céptico e gosta de uma política mais West Wing e menos House of Cards. Uma infância passada a ver Fórmula 1 aos Domingos deixou-lhe um gosto por desportos onde o motor faz do homem herói. Vê na educação e no jornalismo a chave para um mundo melhor.
Mais em joaopcquesado.pt.